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Histórias que não contei

Histórias que não contei. No meu livro “Conta quem viveu, escreve quem se atreve”, editado pelo Instituto Envolverde como e-book, omiti muitas histórias que tenho gravadas em minha mente.

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Algumas omiti por reserva, discrição, pois boa parte dos protagonistas está viva e atuante.

Também não me dediquei ao relato de mazelas: prefiro lembrar do que as pessoas fizeram de positivo e divulgar os bons feitos.

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Falarei hoje de dois personagens, ambos com muita idade quando os conheci (mais de 80 anos) que me impressionaram por suas histórias de vida bastante incomuns e reveladoras do “Brasil popular”.

Um deles, Faca Cega – era cozinheiro em navios brasileiros de grande porte, filiado ao sindicato dos petroleiros e comunista.

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Negro, pobre e comunista. Três qualificativos para uma vida difícil.

Morava em Maria da Graça, subúrbio que alcançei graças ao pré-metrô – um trem melhorado ou metrô piorado? Provavelmente a segunda opção.

Quando o entrevistei, na segunda metade dos anos 80, era já aposentado e bancava- com sua modesta pensão um aluguel de 400 reais por uma salinha para reuniões políticas. A bandeira do Partido (PCB) tremulava encardida na parte alta do sobrado acanhado e velho. Livros, e alguns exemplares antigos da revista Paz & Socialismo ocupava uma estante de tábuas cruas.

Contou a origem do apelido – e lamento não lembrá-lo. O motivo da entrevista era resgatar a memória da militância dos simples, gente comum da classe trabalhadora, para inspirar as novas gerações.

Congela.

O segundo personagem tem o nome de Folha Seca, e o conheci como o jardineiro mais antigo do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, onde atuei como dirigente de 2013 a 2016.

Folha Seca percorria o arboreto todos os dias com sua bicicleta de aros finos e seus sorrisos largos, extrovertidos. Às vezes ao me encontrar trazia flores de seu jardim. E tinha sempre a mesma pergunta: “doutora, vou poder manter minha casinha?”

Era branco, pobre e morava numa posse. Quando lá estive, havia várias ordens de despejo de moradores “ilegais”. Quando saí ele permanecia na sua casinha.

Embora legalmente aposentado, Folha seca ainda trabalhava. Conhecia o Jardim como a palma da mão e ajudava na manutenção com sua memória privilegiada. Por este serviço extra a Associação de Amigos doJardim Botânico lhe pagava uma “pensão adicional”.

Folha Seca (também desconheço o motivo do apelido) foi fazendo puxadinhos na casa humilde e já estava rodeado por 14 parentes entre filhos, netos e bisnetos.

Histórias que não contei. Em muitas ocasiões foi homenageado e exibia com orgulho as matérias publicadas a seu respeito.

Penso que há semelhanças incríveis entre estes dois velhos que o nosso sistema de proteção social produziu em décadas passadas.

Ambos longevos e produtivos.

Ambos estimados pela comunidade.

Mas uma diferença entre os dois – nada sutil – é preciso destacar.

Faca Cega, levou até o fim seu ideal de transformação da sociedade em que viveu.

Folha Seca aprendeu a proteger-se e à sua família, usando as brechas e os códigos das classes médias que habitam o bairro do jardim botânico: ser útil, simpático e usar o contexto a seu favor.

De certa forma, são dois modelos que não mais serão reproduzidos em um país que abandona as tímidas políticas de bem estar dos idosos e acena com uma velhice ao deus dará.

Por muito tempo fomos açoitados moralmente pela existência de “meninos de rua” em nossas cidades.

Em breve serão “velhos de rua” a ocupar o lugar da infância desprotegida.

A inflação comendo solta, em dois dígitos, rói o salário mínimo e a dignidade dos pobres.

O sistema de proteção social que Faca Cega e Folha Seca conheceram esfarela a olhos vistos.

Histórias que não contei. Crespo é cientista social, ambientalista e pesquisadora sênior do Museu de Astronomia e Ciências Afins e coordenou durante 20 anos o estudo “O que os Brasileiros pensam do Meio Ambiente”. Foi vice-presidente do Conselho do Greenpeace de 2006-2008.

por Samyra Crespo
Fonte Envolverde – Ana Maria
Foto Divulgação

Almir Souza

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