Literatura Manauara por Almir Souza

A rua Itamaracá, localizada no centro de Manaus, carrega com os Manauaras, uma história profunda e complexa que se entrelaça com a realidade social e econômica da cidade. Como um dos pontos mais antigos de prostituição em Manaus, essa rua, junto com suas redondezas, se tornou um símbolo de uma parte da cidade muitas vezes invisibilizada e marginalizada, mas também impregnada de uma resistência silenciosa que persiste ao longo dos anos.
O Centro de Manaus é um espaço de confluência de diferentes histórias e realidades, e a rua Itamaracá é um exemplo claro disso. As mulheres que ali se encontram não apenas fazem parte de um mercado sexual, mas também de uma realidade urbana marcada pela desigualdade, pela violência e pela busca por sobrevivência. O cruzamento da rua Itamaracá com a Avenida Sete de Setembro, é uma área de grande circulação, onde muitas mulheres aguardam os clientes, muitas vezes em situação de vulnerabilidade, à sombra das estruturas antigas da cidade.
A praça Dom Pedro II, com seu charme colonial, também se torna um ponto de encontro, com suas sombras e bancos, onde se misturam as memórias da cidade com as histórias de vida das mulheres que ali estão.
Durante a pandemia de COVID-19, a cidade de Manaus foi duramente afetada, e o centro, tradicionalmente pulsante, ficou vazio e silencioso. O isolamento social, as restrições de mobilidade e o medo da doença fizeram com que a vida nas ruas se alterasse drasticamente. Poucas mulheres ousaram continuar a fazer ponto na região, pois o local, antes vibrante, se tornou um reflexo da desolação imposta pela crise sanitária.
Além disso, a precarização das condições de trabalho das prostitutas aumentou nesse período, uma vez que a clientela diminuiu e a vulnerabilidade social foi intensificada.
O centro de Manaus e suas ruas, como a Itamaracá, não são apenas espaços de transações econômicas e de exploração sexual, mas também territórios de resistência e sobrevivência, onde mulheres tentam fazer sentido de suas vidas em meio à exclusão social, à violência urbana e à marginalização histórica. Sua presença, mesmo nos tempos mais difíceis, é um testemunho da luta pela dignidade em um contexto de abandono e invisibilidade.
A literatura, quando se debruça sobre esses espaços urbanos, muitas vezes encontra nas ruas de prostituição não só o retrato de uma vida marcada por dificuldades, mas também a possibilidade de revelar as complexas redes de poder, de afeto e de desejo que se entrelaçam nas margens da sociedade. Poetas e escritores manauaras podem captar, com sensibilidade, os contrastes e as ambigüidades dessas ruas, dando voz a quem, muitas vezes, é silenciada, ao mesmo tempo em que expõem as injustiças e as complexas realidades sociais e históricas da cidade.
Essa relação entre a literatura e o espaço urbano, particularmente em locais como a rua Itamaracá, é um convite a refletir sobre as diferentes camadas de significado e as múltiplas formas de resistência que coexistem no coração de Manaus.
A situação das mulheres que circundam a rua Itamaracá, como eu estou mencionando, reflete uma realidade muito mais complexa do que apenas a prostituição em si. Muitas dessas mulheres não estão ali por escolha, mas por uma combinação de circunstâncias difíceis que as levaram a buscar essa atividade como meio de sobrevivência. Muitas delas são mães que carregam a responsabilidade de sustentar filhos e, muitas vezes, de cuidar de outras pessoas, como parentes ou amigos em situação de vulnerabilidade.
A maternidade, nesse contexto, se torna um fator ainda mais desafiador. As mulheres que trabalham nessas áreas, como a rua Itamaracá, enfrentam uma pressão constante para garantir o bem-estar de seus filhos e das pessoas dependentes delas, tudo isso enquanto lidam com uma precariedade de condições de vida e de trabalho. Para elas, a prostituição, muitas vezes, é uma das poucas alternativas viáveis de sustento, especialmente quando não há políticas públicas suficientes para amparar famílias em situação de vulnerabilidade social ou para garantir o acesso a empregos formais e dignos.
A pressão financeira e emocional é enorme. As mulheres da rua Itamaracá, ao mesmo tempo em que buscam sobreviver e garantir a alimentação, a educação e o cuidado dos filhos, também enfrentam o estigma social e a criminalização da sua profissão. Muitas dessas mulheres estão em uma situação de total marginalização, sendo invisíveis para as políticas públicas e para grande parte da sociedade.
Ao mesmo tempo, essas mulheres formam uma rede de solidariedade entre si. Muitas vezes, elas se ajudam mutuamente, trocando informações sobre cuidados com os filhos, formas de se protegerem da violência e até mesmo cuidando de crianças umas das outras. Essa solidariedade mútua surge como uma estratégia de sobrevivência, uma forma de enfrentar as dificuldades diárias de uma vida marcada pela desigualdade.
A literatura pode ser uma ferramenta poderosa para dar visibilidade a essas histórias de resistência e de luta. Autores e autoras que se debruçam sobre a realidade das mulheres em situação de prostituição e da maternidade nessas condições podem oferecer uma representação mais sensível e profunda dessa realidade. A vida dessas mulheres, com suas dores e esperanças, pode ser capturada na literatura de forma a humanizar nossas histórias e a desafiá-las a não serem vistas apenas pelo estigma de sua profissão, mas como sujeitos plenos, que lutam todos os dias pela dignidade e pelo bem-estar de suas famílias.
Almir Souza – Além disso, é importante destacar que o empoderamento dessas mulheres passa não só pelo reconhecimento de sua luta diária, mas também pela necessidade de políticas públicas mais efetivas que garantam acesso a educação, saúde, segurança e, principalmente, à possibilidade de uma vida com dignidade. A rua Itamaracá e outros locais similares nas cidades são um reflexo de uma falha estrutural do sistema, onde mulheres, mães e famílias inteiras acabam sendo empurradas para margens sociais devido a uma combinação de fatores econômicos, sociais e históricos.
É um ciclo difícil de quebrar, mas as mulheres dessas ruas continuam sendo agentes de suas próprias histórias, muitas vezes invisíveis para a sociedade, mas fundamentais para a construção de uma Manaus mais justa e igualitária.
Eu quero tocar em um ponto interessante e cheio de contrastes: a coexistência entre a beleza histórica dos prédios da área da rua Itamaracá, como a boate Remolus, e a realidade social dura de quem vive ali, muitas vezes à margem da sociedade. A cidade de Manaus, especialmente no Centro, é uma verdadeira “párodia” de épocas passadas, onde o glamour de um passado distante se encontra com o presente marcado por dificuldades e, em muitos casos, pela invisibilidade de grande parte da população.
A boate Remolus, por exemplo, é um espaço notório na memória urbana de Manaus. Com sua fachada imponente e estilo arquitetônico que remonta a décadas passadas, é um reflexo de uma cidade que, ao longo dos anos, foi palco de sonhos, excessos e ilusões, mas também de uma constante reinvenção de seus espaços e significados. quem passeia pelas ruas do Centro, é impossível não notar as influências de diferentes estilos arquitetônicos, especialmente aqueles que remetem ao auge da economia do ciclo da borracha no século XIX. Durante essa época, Manaus viveu uma verdadeira “belle époque”, com grande parte dos seus prédios sendo construídos em estilo art nouveau e art déco, refletindo uma era de prosperidade e otimismo.
Esses prédios, com suas fachadas ornamentadas, cores vivas e detalhes arquitetônicos, são um testemunho do que foi a cidade em seus dias de maior apogeu, quando Manaus era vista como uma das cidades mais ricas do Brasil, imortalizada pela riqueza gerada pela extração da borracha. Hoje, esses mesmos prédios, como os que cercam a rua Itamaracá, são contrastados por uma realidade de decadência e de um visual carregado de nostalgia. O que antes representava a opulência e os sonhos de um futuro promissor, hoje serve de pano de fundo para a dura realidade de mulheres e homens que, muitas vezes, veem ali um espaço de sobrevivência.
A rua Itamaracá e os edifícios ao redor evocam, de fato, um passado recheado de ilusões — não apenas de um tempo de prosperidade econômica, mas também de sonhos de liberdade, de crescimento e de poder que, ao longo do tempo, se diluíram. Hoje, as fachadas dessas construções são testemunhas silenciosas de uma cidade que, por um lado, preserva a sua história arquitetônica e, por outro, esconde os problemas sociais de uma população que vive à sombra desses grandes monumentos.
Essa interação entre o passado de esplendor e o presente de luta tem uma carga simbólica bastante forte. As cores vibrantes dos prédios históricos, muitas vezes já desgastados pelo tempo, contrastam com as sombras e as figuras solitárias das mulheres que, nas calçadas e praças ao redor, buscam sustentar suas famílias e sobreviver em meio a uma cidade marcada pela desigualdade social. Há uma ironia cruel nesse contraste, onde o glamour e as ilusões de um passado distante se misturam à dura realidade do cotidiano das ruas.
Esse cenário tem uma qualidade quase literária, como se a cidade fosse um palco em que os atores (as pessoas que vivem nesse cenário) estão imersos em uma narrativa de contrastes: beleza e decadência, esperança e desilusão. As cores dos prédios, com seus tons de ocre, azul, amarelo e verde, podem lembrar um passado de festas, celebrações e encontros culturais, mas também servem de fundo para as histórias não contadas de quem habita esse espaço de maneira mais silenciosa e marginalizada.
A literatura pode captar esse embate entre o visual deslumbrante e o cotidiano de luta. Muitos escritores e poetas manauaras poderiam extrair dessa dualidade a matéria-prima para contar histórias de sonhos e frustrações, amores e perdas, lembranças e esquecimentos. Pode-se imaginar um romance, por exemplo, onde os prédios históricos e a boate Remulus são cenários de encontros e desencontros, de promessas de uma vida melhor e de desilusões que, como as fachadas desgastadas pela ação do tempo, parecem ter perdido seu brilho original.
Almir Souza – No fundo, esses espaços, com toda sua beleza arquitetônica, servem como metáforas da própria cidade de Manaus — uma cidade de contrastes, onde o passado de opulência ainda ecoa nas pedras e nos azulejos de seus prédios, mas onde o presente exige novas formas de se olhar e de se viver, longe da ilusão de um esplendor que, para muitos, já passou.
A maneira com eu descrevo a Itamaracá e a boate Remolus sugere uma profunda relação emocional entre esses espaços e os manauaras, como se esses locais, impregnados de história e memória, fossem mais do que simples pontos na geografia da cidade, deve ser um verdadeiros símbolos da alma coletiva de Manaus. Eles carregam em si a ternura e a felicidade de um passado vivido, uma sensação de nostalgia que parece se enraizar no cantinho da saudade, onde se encontram as lembranças de momentos de alegria, encontros, festas e sonhos.
Essa minha relação íntima com a cidade, com suas ruas e edifícios, é algo muito presente em várias culturas, especialmente nas grandes cidades históricas, que veem suas paisagens transformadas, mas onde o sentimento de pertencimento e as memórias afetivas continuam vivas. A Itamaracá e a Remolus, como, eu digo, podem parecer estar “encostadas” nesse lugar da saudade, onde os manauaras, ao passarem por ali, sentem como se o tempo tivesse parado por um momento e ao mesmo tempo, os afastasse para uma época de juventude, amor, liberdade e até de uma fé na vida que parecia mais palpável.
A boate Remulus, com seus tons de luxo e exuberância de um tempo áureo, é quase uma cápsula do tempo. Para muitos, ela ainda é um lugar de memórias especiais, um símbolo de encontros românticos ou de festas marcantes, de uma cidade que já foi mais sonhadora e mais vibrante em certos aspectos. A forma como o prédio se mantém ali, com sua arquitetura e sua presença, é um convite para que os manauaras que a conhecem recordem uma época cheia de brilho, de uma felicidade que, embora distanciada, ainda ecoa nas conversas, nas canções e nas histórias contadas.
Ao mesmo tempo, a rua Itamaracá, com seu cenário de contrastes, de uma cidade que, como tantas outras, enfrenta suas mazelas e desigualdades, carrega um significado especial. Mesmo sendo um local marcado por dificuldades, também é um espaço de memórias e afetos, onde muitas pessoas passaram e passam momentos de suas vidas. Pode ser um ponto de passagem, mas também é um lugar de vivências, de encontros e desencontros, de histórias de resistência e de luta.
Quando eu falo de ternura e felicidade, talvez se refira ao vínculo emocional que esses lugares geram, mesmo em meio a uma realidade difícil. A lembrança desses lugares está encrostada na saudade, não apenas como uma recordação do que foi, mas como algo que ainda pulsa nas lembranças afetivas dos manauaras, uma saudade que é, na verdade, uma saudade do que foi vivido com emoção, com intensidade, com coração.
Esses locais são, portanto, testemunhas de um passado que se mistura ao presente, e continuam a viver no imaginário de quem os habita ou os observa. A saudade que eu menciono é uma saudade compartilhada, que vai além do individual: ela é coletiva, é de um tempo que, embora tenha mudado, ainda permanece presente em cada gesto, em cada olhar, e em cada conversa.
Esse sentimento de ternura que essas ruas e prédios evocam é quase um tributo à memória afetiva dos manauaras, um resquício de uma felicidade que, talvez, não volte como era antes, mas que, de alguma forma, nunca se apaga completamente. A cidade, com suas ruas e edifícios, se torna um museu vivo de sentimentos, onde o que ficou de melhor permanece gravado nas lembranças de cada pessoa que passou por ali.
Assim como eu digo, a Itamaracá e a Remolus vão “ficar encrostada na ternura e na felicidade”, é uma maneira poética de expressar como a cidade carrega em seu tecido urbano as histórias, os momentos de emoção genuína que definiram, e ainda definem, a vida das pessoas. Esses espaços, com suas cores, formas e memórias, continuarão sendo um elo, um ponto de encontro entre o passado e o presente, e estarão sempre no cantinho da saudade, onde a cidade se guarda em seus afetos mais profundos.
Fico muito feliz por expressar o que sinto,é um prazer discutir essas questões sobre Manaus, seus espaços, histórias e memórias. Se precisar de mais alguma coisa, seja sobre literatura, história ou qualquer outro assunto, estarei à disposição. Um grande abraço e até a próxima!
por Almir Souza-Redator Hacker Free Lancer
Fonte Redação Fama
Foto Selma Carvalho